A Arte pode beneficiar até a Alfabetização na escola
Pesquisas mostram que o trabalho com Arte ajuda as crianças a diferenciar o formato das letras e a relacionar textos de temas diferentes. Ana Mae Barbosa está à frente de algumas delas
A
professora Ana Mae Barbosa é um dos maiores nomes em ensino de Arte no
Brasil. Formada em um período em que a Academia não voltava os olhos
para o tema, abriu caminho por conta própria, embarcando em bolsas do
marido para estudar mestrado e doutorado na área das Artes Visuais nos
Estados Unidos. Voltou e começou a ter seus primeiros alunos, que, por
sua vez, levavam o interesse pelo tema para suas universidades.
A
professora não vive dias muito otimistas. “Eu não tenho mais a oferecer
além do que já ofereci”, costuma dizer a amigos. Mas, em meia hora de
conversa, revela que ainda tem planos de fazer pelo menos mais dois
projetos de pesquisa. “Pesquisas curtas, porque eu não tenho muito
tempo”.
No
Brasil, preocupa-se com a integração da Arte a outras disciplinas de
Linguagens no currículo do Ensino Médio. “Quando eu vejo o discurso da
interdisciplinaridade, isso não deve ser restaurante de prato feito, em
que se entrega para o cliente um pouco de arroz, um feijão aqui e uma
carne lá. A interdisciplinaridade é feita entre especialistas das áreas,
que se organizam em projetos. O que vai acontecer é a Arte ficar no fim
de uma aula de Geografia, que certamente vão mandar desenhar mapa, o
que já é uma obviedade terrível. Uma aula de História, e certamente vão
mostrar algumas imagens históricas, e isso não é interdisciplinaridade,
isso é apenas um instrumento para melhorar e ativar a aprendizagem. É
diferente de aprender verticalmente a Arte”, argumentou a professores no
dia 2 de setembro de 2019, no auditório do Fórum de Educação, que fez
parte da programação da Bienal do Livro do Rio de Janeiro entre 2 e 3 de
setembro de 2019.
O
que cabe aos professores de Arte fazer diante dessa realidade? “Se
preparar para colaborar com os outros professores, seja lá como for, e
lutar para conseguir um momento, o nosso espaço, para trabalhar com as
crianças verticalmente”.
Em
sua fala, Ana Mae fez um levantamento histórico de nomes e momentos que
foram importantes para a história do ensino da Arte no Brasil, e
lembrou que há pesquisas que já indicam uma forte relação entre
aprendizagem de arte (que Ana Mae prefere chamar de “contato com arte”) e
desenvolvimento de raciocínio em outras áreas. “Na alfabetização, a
criança confunde as palavras lata e bola. Por que? Porque ela se
apropria de configurações: a palavra bola tem uma letra alta, uma baixa,
uma alta e uma baixa, a palavra lata também. Então elas se equivalem. A
criança que trabalha com arte, desenha, trabalha com pintura,
rapidamente percebe a diferença, que é o risco na letra T. Se nós temos
problemas de alfabetização na escola, por que não usar artes visuais,
que é especificamente dirigida para a percepção visual, para a
discriminação?”, provoca.
E
vai além: um pesquisador da Califórnia “que se especializou em
pesquisar pesquisas, é um metapesquisador” encontrou estudos que mostram
que o desenvolvimento intelectual na Arte é transferível para outras
disciplinas. Uma delas mostrou que a prática do desenho desenvolve a
capacidade nas pessoas de relacionar 3 textos de diferentes temas. “Isso
é uma coisa fantástica, pode ser explorada em qualquer área”, comemora
Ana Mae.
Depois da palestra, Ana Mae deu uma entrevista, entre autógrafos e fotos com professores. Confira abaixo:
Como
conciliar o trabalho com o potencial criativo dos alunos, a liberdade
de criação, com o currículo da escola, que em geral tem avaliações e
cobranças?
Ana Mae Barbosa: A
arte-educação mudou muito. Essa visão que você menciona, de só pensar
na expressão do aluno, é aquela que a gente chama de ensino
expressionista, que está ligado ao Modernismo. Eu acho que é muito
importante fazer a criança e o adolescente conseguirem expressar em uma
linguagem presentacional aquilo que ele não pode dizer na linguagem
discursiva, que é essa que eu estou falando com você agora, ou na
linguagem científica. O ser humano se comunica por 3 linguagens: a
presentacional, a científica e a discursiva. É preciso que ele se
desenvolva através das 3. Ele pode ter um potencial fantástico em
linguagem discursiva, e não ter nas outras. Essa linguagem de arte não
se traduz em outra linguagem, você pode criar equivalentes. Quando a
crítica fala da Arte, ela está criando em linguagem discursiva um
equivalente à linguagem presentacional, mas tradução, não tem.
Aí
vem o pós-modernismo, com uma outra visão. Nós temos que desenvolver a
capacidade do aluno se expressar, mas temos também que alimentá-lo. A
ideia anterior era “a arte é uma coisa que sai de dentro”, é o “mínimo
denominador comum” do expressionismo. Mas a gente tem que se alimentar
de arte. Expor o aluno à linguagem presentacional, à fotografia, à
pintura, ao desenho, ao cinema, porque cinema também é arte visual, e
fazê-los pensar. Por que eu acho que isso é melhor do que aquilo? Já
estou integrando a linguagem discursiva no próprio conhecimento de arte.
E criando também uma bibliografia do olhar, juntando várias visões de
arte, vários processos artísticos. Meu livro “A Abordagem Triangular”
supõe que, para o ensino das Artes Visuais, você tem que fazer, ler a
obra de arte ou a imagem, interpretar criticamente até, e contextualizar
o que você faz e o que você vê. Aí essa contextualização é uma porta
aberta para as outras disciplinas.
Há
poucos dias eu dei uma aula mostrando um trabalho sobre Ecologia junto
com artistas que fizemos em 1992, durante a Rio 92. A contextualização
foi Botânica. Com botânicos no Parque do Ibirapuera, conversamos sobre
plantas, sobre árvores. Aprenderam que cada planta é cuidada de um
jeito. Para depois subir no museu e ter uma artista com uma árvore
enorme, só com os galhos desenhados em acetato transparente, presa na
parede do museu, e os meninos iam produzir as folhas da árvore, e ele
colocava a folha da árvore em papel autocolante. Depois disso eles iam
ver uma instalação de cafezal em diversos momentos da sua maturação. Aí,
eles passavam do figurativo para o abstrato, e aí depois tinha uma
outra parte vinculada ao museu, de olhar as obras livremente, escolher
uma pra ser discutida com o educador em grupos pequenos. Tem vários
passos, mas a gente tinha a ciência ali, iniciando, e eles tinham a
experiência com o mundo fenomênico da arte, depois o mundo como
representação figurativa, e depois o mundo da árvore representado nos
tratamentos. Eles descobriram assim que a abstração não é “jogamento de
tinta”, é pensamento também, pensamento visual.
Essa
nova maneira de ensinar Arte surge mais ou menos em 92. Teve um impacto
enorme. O professor de Arte era desconsiderado, diziam que ele não
prepara aula, aí o professor de Arte começou a ser respeitado na escola,
porque ele tinha que preparar aula como todos os outros. Para o
professor, foi um ganho.
Você disse que a Arte está perdendo espaço por causa dessa junção com as outras disciplinas no Ensino Médio. Por que?
Há
muito perigo, porque a Educação está sendo dominada por economistas.
Outros governos também fizeram isso. É submeter a Educação à Economia.
Vem sendo uma característica não só do Brasil, mas do Capitalismo em
geral. Mas agora a coisa está pior, porque já está decretado.
A
Arte é uma forma de compensação pela repressão que a gente tem que
exercer nos adolescentes, é importantíssima do ponto de vista do
raciocínio. Olha, veja a dificuldade que é, no desenho de observação,
você passar duas dimensões para três dimensões, é um processo difícil do
ponto de vista intelectual, da inteligência.
As
pesquisas mostram que a arte influi inclusive nos processos mentais que
são medidos pelo teste de QI, que pede principalmente raciocínio. Até
nesses testes já está se provando que um aluno que trabalha com Arte
pontua melhor. Como é que você vai largar? Eu nem falo do emocional,
porque falar para um burocrata da Educação sobre o emocional não vai ter
efeito, então eu falo dessas pesquisas concretas que provam que há
transferência de aprendizagem, processos mentais da Arte para as outras
áreas, tudo isso mostra que a Arte tem um papel importante.
Nos
Estados Unidos foi a mesma coisa. No fim da década de 1950, quando o
Sputnik é lançado, há uma ênfase imensa em arte, as ainda modernistas, a
ideia do expressionismo. E chega a década de 1970, toda uma geração
criada com muita arte nos Estados Unidos vai enfrentar o que? A guerra
do Vietnã. E eles conseguiram se posicionar contra, foi lindo, eu vivi
lá esse momento em 1971, estava fazendo meu mestrado de Yale, gente
rica, gente poderosa, gente bem formada fazendo performances contra a
guerra do Vietnã dentro da Universidade.
Então
eles disseram “Oh, ok. As pessoas que a gente formou assim, pensando em
criatividade, estão fazendo isso contra a gente” e começaram a cortar.
Eu não sei por que estão fazendo isso hoje. Nos Estados Unidos é claro
que eles começaram a cortar arte depois do movimento dos jovens contra a
guerra do Vietnã.
Você
falou no auditório sobre as crianças que desenvolvem a criatividade
desde cedo e têm facilidade de identificar a diferença das letras. É um
benefício visível da arte para a alfabetização, e vai na contramão da
crença de que se deve incentivar Português e Matemática para que as
pessoas aprendam a ler, escrever e fazer contas. Pelo visto não é bem
assim...
Não,
claro que não. Eu acho até mais séria a pesquisa que foi feita nos
Estados Unidos, que quem trabalha com desenho é capaz de relacionar 3
textos de temas completamente diferentes. Isso prova que desenvolve a
capacidade de ler, de observar, raciocinar.
Por que você prefere se referir a Arte na escola como “contato” com arte em vez de “aprendizagem” de arte?
Isso
é um pensamento que eu ainda estou desenvolvendo, porque eu sempre
briguei muito com essa história de dizer “a arte não se ensina”, que vem
da Bauhaus. Aí eu dizia “se a arte não se ensina, se aprende”. Agora eu
já acho que não sei se vai mais além, se contamina com a arte. É
diferente, uma pessoa contaminada pela arte, ela age, ela busca por ela
própria mais arte, e se alimenta sempre de arte. Agora, como eu vou
colocar isso teoricamente, sem pesquisa, eu não sei.
Eu
tenho poucos anos na minha frente agora, eu ainda tenho pelo menos dois
temas de pesquisa que eu quero desenvolver. Um deles é o problema da
criatividade modernista e da criatividade pós-moderna. A criatividade
modernista enfatizou a produção de múltiplas respostas, que é a fluência
e a originalidade, sabendo que existia outros processos. Mas a
criatividade pós-moderna enfatiza principalmente a flexibilidade, a
mudança de categoria.
Existe
até um teste de flexibilidade: uma página com 16 círculos e você tem
que completar objetos. A pessoa fluente vai, por exemplo, fazer assim:
panela, boca de fogão, ovo. São redondos da mesma categoria. Uma pessoa
flexível vai fazer ovo, botão e roda de bicicleta, por exemplo. Muda
completamente de categoria. Agora o equilíbrio entre essas duas é que
torna o indivíduo mais criativo ou não.
Esses
mundos, o moderno e o pós-moderno, se ligam pela flexibilidade e
fluência, mas um está pensando em originalidade, e o pós-modernismo já
não pensa mais em originalidade. Pensa em adequação, e aí destaca a
elaboração, porque a elaboração vai fazer com que você, pela
necessidade, vá mudando a função de um objeto ou o próprio objeto. Só
que eu não sei ainda como fazer isso para provar o que eu estou dizendo.
E a afetividade, você acha que tem espaço para ser trabalhada na arte-educação? A disciplina da Arte tem esse potencial?
Para
mim, todas as disciplinas têm esse potencial. Mas a cultura brasileira
vem dando à Arte essa tarefa, e a gente tem que assumir e realmente
fazer isso.
Por que você diz que a cultura brasileira vem entregando essa tarefa para a Arte?
Porque
não se preocupa em desenvolvimento de criatividade nas outras áreas.
Quando fala de criatividade, “Ah, isso é Arte. Isso aí a Arte faz”.
Agora acho que nem mais isso querem, né, porque se estão tirando a Arte,
não sei como vai ser essa lavagem cerebral da cultura brasileira,
porque o sistema escolar sempre pensou isso. Se estamos desenvolvendo
criatividade na Arte, pronto, agora Matemática, Inglês, a gente pode ser
um pouco decoreba, sabe? Quando nada deveria ser decoreba.
Nesses 63 anos de trabalho, você já viu muitos momentos em que a Arte foi subjugada?
Sim,
muitos. A primeira ameaça de tirar a Arte do currículo foi em 1996. Foi
crucial, terrível. Dividimos todos os professores para cada um
azucrinar um senador ou deputado, sabe? Hoje eu não tenho mais energia
pra ir e trabalhar assim.
Mas você acha que dá pra gente ter esperança?
Eu
não sei se tenho esperança, não. Eu também deixei de ser otimista
totalmente, entendeu? Eu tô muito apreensiva, é a palavra que posso
usar. Porque nós somos, hoje, o país que tem a melhor arte-educação na
América Latina. Os outros países estão começando. Estão indo muito bem.
Eu não ia há 5 anos ao México, fiquei espantada com o avanço nesses 5
anos. Entretanto nós vamos perder a liderança. Por causa de quê? Por
causa de mestrados e doutorados, das pesquisas.
Tem
um programa do Ministério da Educação (MEC) chamado mestrado
profissional, que recebe, em Artes, só o professor que está em sala de
aula e quer desenvolver um projeto que seja voltado para o chão da
escola. A gente viu que tínhamos excelentes mestrados e doutorados, mas
raramente algum chegava a modificar o chão da escola. E aí criou-se esse
mestrado, com o professor que tinha que estar em sala de aula. Ele
diminuía a carga horária, e recebia uma bolsa para alimentação e
transporte, porque essas coisas aumentam quando você está estudando. Em
São Paulo só teve duas turmas formadas. Agora está começando a terceira
sem bolsa, com três bolsas apenas. Isso pra mim é sem bolsa. Então, isso
já é uma decadência.
A Arte pode beneficiar até a Alfabetização na escola
Pesquisas mostram que o trabalho com Arte ajuda as crianças a diferenciar o formato das letras e a relacionar textos de temas diferentes. Ana Mae Barbosa está à frente de algumas delas
A
professora Ana Mae Barbosa é um dos maiores nomes em ensino de Arte no
Brasil. Formada em um período em que a Academia não voltava os olhos
para o tema, abriu caminho por conta própria, embarcando em bolsas do
marido para estudar mestrado e doutorado na área das Artes Visuais nos
Estados Unidos. Voltou e começou a ter seus primeiros alunos, que, por
sua vez, levavam o interesse pelo tema para suas universidades.
A
professora não vive dias muito otimistas. “Eu não tenho mais a oferecer
além do que já ofereci”, costuma dizer a amigos. Mas, em meia hora de
conversa, revela que ainda tem planos de fazer pelo menos mais dois
projetos de pesquisa. “Pesquisas curtas, porque eu não tenho muito
tempo”.
No
Brasil, preocupa-se com a integração da Arte a outras disciplinas de
Linguagens no currículo do Ensino Médio. “Quando eu vejo o discurso da
interdisciplinaridade, isso não deve ser restaurante de prato feito, em
que se entrega para o cliente um pouco de arroz, um feijão aqui e uma
carne lá. A interdisciplinaridade é feita entre especialistas das áreas,
que se organizam em projetos. O que vai acontecer é a Arte ficar no fim
de uma aula de Geografia, que certamente vão mandar desenhar mapa, o
que já é uma obviedade terrível. Uma aula de História, e certamente vão
mostrar algumas imagens históricas, e isso não é interdisciplinaridade,
isso é apenas um instrumento para melhorar e ativar a aprendizagem. É
diferente de aprender verticalmente a Arte”, argumentou a professores no
dia 2 de setembro de 2019, no auditório do Fórum de Educação, que fez
parte da programação da Bienal do Livro do Rio de Janeiro entre 2 e 3 de
setembro de 2019.
O
que cabe aos professores de Arte fazer diante dessa realidade? “Se
preparar para colaborar com os outros professores, seja lá como for, e
lutar para conseguir um momento, o nosso espaço, para trabalhar com as
crianças verticalmente”.
Em
sua fala, Ana Mae fez um levantamento histórico de nomes e momentos que
foram importantes para a história do ensino da Arte no Brasil, e
lembrou que há pesquisas que já indicam uma forte relação entre
aprendizagem de arte (que Ana Mae prefere chamar de “contato com arte”) e
desenvolvimento de raciocínio em outras áreas. “Na alfabetização, a
criança confunde as palavras lata e bola. Por que? Porque ela se
apropria de configurações: a palavra bola tem uma letra alta, uma baixa,
uma alta e uma baixa, a palavra lata também. Então elas se equivalem. A
criança que trabalha com arte, desenha, trabalha com pintura,
rapidamente percebe a diferença, que é o risco na letra T. Se nós temos
problemas de alfabetização na escola, por que não usar artes visuais,
que é especificamente dirigida para a percepção visual, para a
discriminação?”, provoca.
E
vai além: um pesquisador da Califórnia “que se especializou em
pesquisar pesquisas, é um metapesquisador” encontrou estudos que mostram
que o desenvolvimento intelectual na Arte é transferível para outras
disciplinas. Uma delas mostrou que a prática do desenho desenvolve a
capacidade nas pessoas de relacionar 3 textos de diferentes temas. “Isso
é uma coisa fantástica, pode ser explorada em qualquer área”, comemora
Ana Mae.
Depois da palestra, Ana Mae deu uma entrevista, entre autógrafos e fotos com professores. Confira abaixo:
Como
conciliar o trabalho com o potencial criativo dos alunos, a liberdade
de criação, com o currículo da escola, que em geral tem avaliações e
cobranças?
Ana Mae Barbosa: A
arte-educação mudou muito. Essa visão que você menciona, de só pensar
na expressão do aluno, é aquela que a gente chama de ensino
expressionista, que está ligado ao Modernismo. Eu acho que é muito
importante fazer a criança e o adolescente conseguirem expressar em uma
linguagem presentacional aquilo que ele não pode dizer na linguagem
discursiva, que é essa que eu estou falando com você agora, ou na
linguagem científica. O ser humano se comunica por 3 linguagens: a
presentacional, a científica e a discursiva. É preciso que ele se
desenvolva através das 3. Ele pode ter um potencial fantástico em
linguagem discursiva, e não ter nas outras. Essa linguagem de arte não
se traduz em outra linguagem, você pode criar equivalentes. Quando a
crítica fala da Arte, ela está criando em linguagem discursiva um
equivalente à linguagem presentacional, mas tradução, não tem.
Aí
vem o pós-modernismo, com uma outra visão. Nós temos que desenvolver a
capacidade do aluno se expressar, mas temos também que alimentá-lo. A
ideia anterior era “a arte é uma coisa que sai de dentro”, é o “mínimo
denominador comum” do expressionismo. Mas a gente tem que se alimentar
de arte. Expor o aluno à linguagem presentacional, à fotografia, à
pintura, ao desenho, ao cinema, porque cinema também é arte visual, e
fazê-los pensar. Por que eu acho que isso é melhor do que aquilo? Já
estou integrando a linguagem discursiva no próprio conhecimento de arte.
E criando também uma bibliografia do olhar, juntando várias visões de
arte, vários processos artísticos. Meu livro “A Abordagem Triangular”
supõe que, para o ensino das Artes Visuais, você tem que fazer, ler a
obra de arte ou a imagem, interpretar criticamente até, e contextualizar
o que você faz e o que você vê. Aí essa contextualização é uma porta
aberta para as outras disciplinas.
Há
poucos dias eu dei uma aula mostrando um trabalho sobre Ecologia junto
com artistas que fizemos em 1992, durante a Rio 92. A contextualização
foi Botânica. Com botânicos no Parque do Ibirapuera, conversamos sobre
plantas, sobre árvores. Aprenderam que cada planta é cuidada de um
jeito. Para depois subir no museu e ter uma artista com uma árvore
enorme, só com os galhos desenhados em acetato transparente, presa na
parede do museu, e os meninos iam produzir as folhas da árvore, e ele
colocava a folha da árvore em papel autocolante. Depois disso eles iam
ver uma instalação de cafezal em diversos momentos da sua maturação. Aí,
eles passavam do figurativo para o abstrato, e aí depois tinha uma
outra parte vinculada ao museu, de olhar as obras livremente, escolher
uma pra ser discutida com o educador em grupos pequenos. Tem vários
passos, mas a gente tinha a ciência ali, iniciando, e eles tinham a
experiência com o mundo fenomênico da arte, depois o mundo como
representação figurativa, e depois o mundo da árvore representado nos
tratamentos. Eles descobriram assim que a abstração não é “jogamento de
tinta”, é pensamento também, pensamento visual.
Essa
nova maneira de ensinar Arte surge mais ou menos em 92. Teve um impacto
enorme. O professor de Arte era desconsiderado, diziam que ele não
prepara aula, aí o professor de Arte começou a ser respeitado na escola,
porque ele tinha que preparar aula como todos os outros. Para o
professor, foi um ganho.
Você disse que a Arte está perdendo espaço por causa dessa junção com as outras disciplinas no Ensino Médio. Por que?
Há
muito perigo, porque a Educação está sendo dominada por economistas.
Outros governos também fizeram isso. É submeter a Educação à Economia.
Vem sendo uma característica não só do Brasil, mas do Capitalismo em
geral. Mas agora a coisa está pior, porque já está decretado.
A
Arte é uma forma de compensação pela repressão que a gente tem que
exercer nos adolescentes, é importantíssima do ponto de vista do
raciocínio. Olha, veja a dificuldade que é, no desenho de observação,
você passar duas dimensões para três dimensões, é um processo difícil do
ponto de vista intelectual, da inteligência.
As
pesquisas mostram que a arte influi inclusive nos processos mentais que
são medidos pelo teste de QI, que pede principalmente raciocínio. Até
nesses testes já está se provando que um aluno que trabalha com Arte
pontua melhor. Como é que você vai largar? Eu nem falo do emocional,
porque falar para um burocrata da Educação sobre o emocional não vai ter
efeito, então eu falo dessas pesquisas concretas que provam que há
transferência de aprendizagem, processos mentais da Arte para as outras
áreas, tudo isso mostra que a Arte tem um papel importante.
Nos
Estados Unidos foi a mesma coisa. No fim da década de 1950, quando o
Sputnik é lançado, há uma ênfase imensa em arte, as ainda modernistas, a
ideia do expressionismo. E chega a década de 1970, toda uma geração
criada com muita arte nos Estados Unidos vai enfrentar o que? A guerra
do Vietnã. E eles conseguiram se posicionar contra, foi lindo, eu vivi
lá esse momento em 1971, estava fazendo meu mestrado de Yale, gente
rica, gente poderosa, gente bem formada fazendo performances contra a
guerra do Vietnã dentro da Universidade.
Então
eles disseram “Oh, ok. As pessoas que a gente formou assim, pensando em
criatividade, estão fazendo isso contra a gente” e começaram a cortar.
Eu não sei por que estão fazendo isso hoje. Nos Estados Unidos é claro
que eles começaram a cortar arte depois do movimento dos jovens contra a
guerra do Vietnã.
Você
falou no auditório sobre as crianças que desenvolvem a criatividade
desde cedo e têm facilidade de identificar a diferença das letras. É um
benefício visível da arte para a alfabetização, e vai na contramão da
crença de que se deve incentivar Português e Matemática para que as
pessoas aprendam a ler, escrever e fazer contas. Pelo visto não é bem
assim...
Não,
claro que não. Eu acho até mais séria a pesquisa que foi feita nos
Estados Unidos, que quem trabalha com desenho é capaz de relacionar 3
textos de temas completamente diferentes. Isso prova que desenvolve a
capacidade de ler, de observar, raciocinar.
Por que você prefere se referir a Arte na escola como “contato” com arte em vez de “aprendizagem” de arte?
Isso
é um pensamento que eu ainda estou desenvolvendo, porque eu sempre
briguei muito com essa história de dizer “a arte não se ensina”, que vem
da Bauhaus. Aí eu dizia “se a arte não se ensina, se aprende”. Agora eu
já acho que não sei se vai mais além, se contamina com a arte. É
diferente, uma pessoa contaminada pela arte, ela age, ela busca por ela
própria mais arte, e se alimenta sempre de arte. Agora, como eu vou
colocar isso teoricamente, sem pesquisa, eu não sei.
Eu
tenho poucos anos na minha frente agora, eu ainda tenho pelo menos dois
temas de pesquisa que eu quero desenvolver. Um deles é o problema da
criatividade modernista e da criatividade pós-moderna. A criatividade
modernista enfatizou a produção de múltiplas respostas, que é a fluência
e a originalidade, sabendo que existia outros processos. Mas a
criatividade pós-moderna enfatiza principalmente a flexibilidade, a
mudança de categoria.
Existe
até um teste de flexibilidade: uma página com 16 círculos e você tem
que completar objetos. A pessoa fluente vai, por exemplo, fazer assim:
panela, boca de fogão, ovo. São redondos da mesma categoria. Uma pessoa
flexível vai fazer ovo, botão e roda de bicicleta, por exemplo. Muda
completamente de categoria. Agora o equilíbrio entre essas duas é que
torna o indivíduo mais criativo ou não.
Esses
mundos, o moderno e o pós-moderno, se ligam pela flexibilidade e
fluência, mas um está pensando em originalidade, e o pós-modernismo já
não pensa mais em originalidade. Pensa em adequação, e aí destaca a
elaboração, porque a elaboração vai fazer com que você, pela
necessidade, vá mudando a função de um objeto ou o próprio objeto. Só
que eu não sei ainda como fazer isso para provar o que eu estou dizendo.
E a afetividade, você acha que tem espaço para ser trabalhada na arte-educação? A disciplina da Arte tem esse potencial?
Para
mim, todas as disciplinas têm esse potencial. Mas a cultura brasileira
vem dando à Arte essa tarefa, e a gente tem que assumir e realmente
fazer isso.
Por que você diz que a cultura brasileira vem entregando essa tarefa para a Arte?
Porque
não se preocupa em desenvolvimento de criatividade nas outras áreas.
Quando fala de criatividade, “Ah, isso é Arte. Isso aí a Arte faz”.
Agora acho que nem mais isso querem, né, porque se estão tirando a Arte,
não sei como vai ser essa lavagem cerebral da cultura brasileira,
porque o sistema escolar sempre pensou isso. Se estamos desenvolvendo
criatividade na Arte, pronto, agora Matemática, Inglês, a gente pode ser
um pouco decoreba, sabe? Quando nada deveria ser decoreba.
Nesses 63 anos de trabalho, você já viu muitos momentos em que a Arte foi subjugada?
Sim,
muitos. A primeira ameaça de tirar a Arte do currículo foi em 1996. Foi
crucial, terrível. Dividimos todos os professores para cada um
azucrinar um senador ou deputado, sabe? Hoje eu não tenho mais energia
pra ir e trabalhar assim.
Mas você acha que dá pra gente ter esperança?
Eu
não sei se tenho esperança, não. Eu também deixei de ser otimista
totalmente, entendeu? Eu tô muito apreensiva, é a palavra que posso
usar. Porque nós somos, hoje, o país que tem a melhor arte-educação na
América Latina. Os outros países estão começando. Estão indo muito bem.
Eu não ia há 5 anos ao México, fiquei espantada com o avanço nesses 5
anos. Entretanto nós vamos perder a liderança. Por causa de quê? Por
causa de mestrados e doutorados, das pesquisas.
Tem
um programa do Ministério da Educação (MEC) chamado mestrado
profissional, que recebe, em Artes, só o professor que está em sala de
aula e quer desenvolver um projeto que seja voltado para o chão da
escola. A gente viu que tínhamos excelentes mestrados e doutorados, mas
raramente algum chegava a modificar o chão da escola. E aí criou-se esse
mestrado, com o professor que tinha que estar em sala de aula. Ele
diminuía a carga horária, e recebia uma bolsa para alimentação e
transporte, porque essas coisas aumentam quando você está estudando. Em
São Paulo só teve duas turmas formadas. Agora está começando a terceira
sem bolsa, com três bolsas apenas. Isso pra mim é sem bolsa. Então, isso
já é uma decadência.
Nenhum comentário:
Postar um comentário